Beleza e dor a primeira vista são termos
aparentemente incompatíveis na mesma frase, e mais ainda se a beleza é adjetivo
referido a própria dor. Dor é algo que a maioria das pessoas não gosta. É
desagradável, ruim e indesejada. Seja ela no corpo, na alma ou no coração, ela
nunca é esperada com alegria.
Nas suas variações temos dores físicas
agudas, crônicas - e de minha autoria - as sentenciais, que nos acompanharão e
nos proporcionarão os momentos derradeiros. A simples memória ou projeção
da dor tem o poder de nos causar arrepios e fobias.
No mundo subjetivo também existem
classificações de dores, e variações da mesma. Algumas são totalmente intrusas
e fora do nosso controle. São feridas fundas que jamais desaparecerão. Porem
outras escolhemos cultivar, apesar de todos os alertas, insistimos em alimentá-las
ate que se alimentem de nós. Exemplos fáceis são as frustrações guardadas, o
orgulho isolador, a negligencia ao perdão, a necessidade de sentir-se vitima,
enfim, são tantas dores do mundo subjetivo.
Como já dizia algum autor, que
infelizmente não lembro quem é, “cada um sabe da dor e da alegria que carrega
no coração”. Mas seja a dor física ou subjetiva, em suma, a dor incomoda. A dor
exprime urgência, gera angustia, não permite espera ou adiamentos. A dor exige
iniciativa, clama por cura, e não descansa até que a solução do problema seja
total.
A beleza da dor mora bem aí, no meio do
seu emaranhado de petulância, no incomodo. Incomodar significa anular a
comodidade, que para ser restabelecida necessita de providencias praticas.
Citarei alguns exemplos bem práticos de como a dor gera atitude a fim de
retomar a comodidade.
A dor movimenta nosso corpo afim de
que não necrosemos por falta de circulação sanguínea. Faz-nos buscar abrigo e
alimentos para não morrermos de fome e frio, impede que nos queimemos de
maneiras mais graves pelo descuido com o sol ou utensílios culinários.
Levando pro mundo mais subjetivo, a dor na
consciência deveria nos impedir de irmos dormir brigados com o cônjuge. Nos
impele a pedir desculpas, nos constrange a fazermos o certo quando de pronto
não estamos muito dispostos. A dor da saudade faz com que reduzamos as
distancias entre nossos amados e nos impede de desistirmos de uma relação nos
primeiros impasses. A lembrança de dores de coração partido nos torna mais
seletivos quanto a quem colocamos pra dentro de nossas vidas e também nos
ensinam a não partir corações alheios.
Os profissionais da área da saúde estão
bastante familiarizados com a informação enfática de que as doenças mais
perigosas são as silenciosas (e indolores), por que seus portadores geralmente
só buscam ajuda quando já é tarde demais, pois nenhuma dor anterior os alertou
que algo estava errado. E basicamente essa é a função da dor, alertar de forma
bem palpável que algo não vai bem.
Quando deixamos de sentir as dores que nos
cabem, provavelmente é por que já caímos da beira do precipício. Quando nosso
coração não dói mais ao passar anos sem visitar nossos pais, talvez nem mais
tenhamos coração.
Quando a consciência nos deixa dormir em
paz mesmo depois de um dia corrupto, provavelmente já tenhamos a assassinado.
Quando nossos sonhos abafados param de se debater dentro de nós, talvez o eu
interior já tenha falecido, e apenas dançaremos o resto da valsa por que a
musica ainda toca. Que tragédia a ausência da dor.
A ausência do incomodo pode nos estagnar,
e que trágico é o abandono da busca por algo melhor. Que trágico o cessar da
busca por mais sabedoria, quando a dor da ignorância cessa e nos sentimos
confortáveis com nossa situação medíocre.
O crescimento dói, a hipertrofia muscular
dói, e a busca pelo crescimento pessoal em geral é iniciado por uma dor também
pessoal. A dor é inteligente, e se nos aproveitarmos dos avisos que ela nos dá,
podemos sim considerá-la bela, e útil ferramenta na lapidação do nosso caráter.
Infelizmente muito dessa vida só se aprende pela dor. Muita sabedoria só se
adquire sentindo na pele certas agruras.
E antes de encerrar, acho interessante lembrar
mais uma curiosidade sobre a dor. Ela é muitíssimo particular e pessoal. Não se
pode sentir a dor do outro, e se faz ainda mais particular pelo fato de cada
pessoa a sentir de forma única. O estimulo que para um pode ser apenas um
incomodo médio, é extremamente dolorido para o outro.
Outra curiosidade é que, via de regra, meu
mindinho do pé pisado sempre vai me parecer mais dolorido que o seu estorce de
tornozelo, por que eu posso sentir apenas meu mindinho. Meu coração partido por
um amor de verão ainda vai parecer mais dramático que a sua viuvez precoce.
Pense um pouco, não é assim mesmo que
funciona?! Temos uma pré-disposição a menosprezar a dor alheia, afinal não
estamos sentindo nada, mas geralmente nos tornamos muito mais sensíveis a uma
dor de outrem quando nós mesmos já passamos por ela.
Para curarmos uma dor precisamos de uma
iniciativa, mas não precisamos nos curar sozinhos.
Pedir ajuda pode ser muitíssimo sensato
quando não se sabe a receita pra curar a sua dor. Também é sensato ajudar a
quem vemos sofrendo, sem julgamentos nem espera de algo em troca. Torna-se
absolutamente obrigatória a solicitude ao próximo quando lembramos que com
certeza já fomos inúmeras vezes auxiliados em momentos de dor.
Desenvolver a empatia e o empenho em
aliviar as dores dos outros nos torna muito mais humanos, muito menos duros e
solitários, alem de funcionar como excelente analgésico a nossas próprias
dores.